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terça-feira, 26 de março de 2024

As Primaveras de Ana Catarina Grilo


Primaveras. Ana Catarina Grilo (1974-   ).

Estas Primaveras há muito que nos aquecem a alma. Sim, porque a alma também precisa de ser aquecida. E então sentimo-nos rejuvenescidos, mais novos que nós próprios e com vontade de nos transformar em borboleta e pousar de flor em flor, até nos transformarmos em larva e regressar na Primavera seguinte, novamente borboleta. É isso a vida. Uma sucessão de ciclos com picos primaveris que mantêm a chama da alma acesa.
Obrigado Ana por partilhar connosco estas Primaveras ternurentas. Bem-haja.

Hernâni Matos
Publicado a 20 de Maio de 2021

segunda-feira, 25 de março de 2024

Atrás da Primavera, outras Primaveras hão de vir

 

O testemunho da Primavera. A Boniqueira - Joana Santos Ceramista


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
FLORBELA ESPANCA (1894-1930)

Fascínio é o natural e intenso sentimento despertado pela imagem aqui apresentada. Lado a lado, duas Primaveras com os mesmos atributos, a mesma estética e o mesmo cromatismo, diferentes apenas no tamanho. Uma é Primavera adulta e a outra uma Primavera menina.
É notória uma forte ligação entre elas, patente na mão da mãe que segura a mão da filha, a quem comunica confiança e também ternura, igualmente transmitida pelo olhar que a Primavera menina absorve, encantada. É a partilha de saberes, de luz e de claridades, de cores e de tons, de perfumes e sons. É o legado de marcas identitárias ciclicamente propaladas à natureza e que assinalam a sua renovação. É uma mensagem de esperança nos dias da amanhã. É o revelar de um paradigma: Atrás da Primavera, outras Primaveras hão de vir.
O Testemunho da Primavera de Joana Santos é simultaneamente o testemunho do génio criativo e da mente brilhante de uma mulher ceramista, que há muito pôs a magia das suas mãos tecnicamente dotadas, em sincronia harmónica com os impulsos de alma. É um deleite de espírito a visualização e a contemplação das suas criações. É, de resto, um privilégio e isso para mim é muito importante, usufruir do privilégio da sua amizade.

Publicado em 18 de Abril de 2023

domingo, 24 de março de 2024

A Primavera de Joana Oliveira


Primavera de arco (2020) - Parte da frente. Joana Oliveira (1978-  ).
A Primavera constitui há muito um tema transversal a toda a poesia portuguesa. Camões, numa “Elegia” confessa: “Vi já que a Primavera, de contente, / De mil cores alegres, revestia / O monte, o rio, o campo, alegremente.”. Por sua vez, Florbela Espanca, no soneto “Amar” proclama: “Há uma Primavera em cada vida: / É preciso cantá-la assim florida, / Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!”. Já o cancioneiro popular considera que: “Primavera, linda flor / Como ela não há iguais: / Primavera volta sempre, / Mocidade não vem mais!”.
A Primavera dos pintores
A Primavera é o tema central de obras de grandes mestres da pintura universal, com destaque pessoal para Sandro Botticelli, Jacob Grimmer, Tintoretto, Christian Bernhard Rode, János Rombauer, Caude Monet, Alfons Mucha, Veloso Salgado e José Malhoa.
Os seus quadros representam a natureza, verdejante e florida, com a presença alegórica de graciosas figuras femininas, enquadradas por flores, em ramos, grinaldas ou arcos.
A Primavera dos barristas
Na barrística popular de Estremoz existem figuras designadas genericamente por “Primaveras”, que para além de constituírem uma alegoria à estação do mesmo nome, são também figuras de Entrudo e registos dos primitivos rituais vegetalistas de celebração e exaltação do desabrochar da natureza.
Como figuras emblemáticas que são, as Primaveras constituem um tema inescapável à modelação por qualquer barrista. Nela são variados os caminhos que se lhe deparam. Em primeiro lugar, a modelação, a qual pode ser executada na linha de continuidade dos barristas precedentes ou alternativamente num rumo que de certo modo constitui uma ruptura com aquela prática. Trata-se de uma ruptura que sem fugir aos cânones da modelação tradicional, proclama as suas próprias marcas identidárias, notórias na estética da figura criada. Em segundo lugar, a decoração desta. Aqui pode haver uma inovação na cromática tradicional que reforce a mensagem que é intrínseca ao tema, bem como a introdução de elementos de composição que reforcem a contextualização temática.         
A Primavera de Joana Oliveira
A barrista Joana Oliveira recriou recentemente a chamada “Primavera de arco”. Na sua construção seguiu o segundo dos caminhos anteriormente apontados: o da inovação. E fê-lo para dar conta do modo como vê as coisas e com a força anímica que é seu timbre.              
A Primavera nasceu-lhe das mãos e tomou forma. Cresceu como figura, emancipou-se e autonomizou-se para fazer companhia a um apaixonado incorrigível da barrística popular de Estremoz. Permitam-me que vos apresente a “Primavera” que é e será sempre de Joana Oliveira. 
É uma figura de corpo elegante, aspecto juvenil e delicado, com ar jovial, da qual irradia luminosidade e frescura.
A postura das mãos parece antecipar o levantamento dos braços para o corpo rodopiar sobre si mesmo. E aqui reside aquilo que me parece ser uma das características mais importantes da modelação de Joana Oliveira: a capacidade mágica de através de uma representação estática, sugerir uma representação cinemática. E só este pormenor, revela-nos de imediato, Joana Oliveira como uma barrista de primeira água. 
Na decoração da figura, predominam o verde e o amarelo. O primeiro é a cor da natureza viva, associada ao crescimento e à renovação. O segundo traduz a alegria e o calor humano que lhe está associado. O azul do chapéu transmite serenidade, tranquilidade e harmonia a todo o conjunto.
Gratidão
Eu queria agradecer-lhe Joana, a beleza da figura que criou.
Bem haja! 
Publicado inicialmente a 6 de Julho de 2020

Primavera de arco (2020) - Parte de trás. Joana Oliveira (1978-  ).

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Cristo na coluna


Cristo na coluna. José Moreira (1926-1991). Colecção particular.


A imagem devocional da figura, da autoria do barrista estremocense José Moreira (1926-1991), representa um episódio da Paixão de Cristo conhecido por flagelação de Jesus, também designado por Cristo na coluna. Trata-se de um episódio recorrente na arte cristã, sobretudo em ciclos da Paixão ou como parte dos ciclos da Vida de Cristo. O evento da flagelação[i] é mencionado em três dos quatro evangelhos canónicos: João 19:1, Marcos 14:65 e Mateus 27:26. A flagelação constituía um prelúdio comum à condenação pela crucificação sob o direito romano.
Jesus, de barba e cabelo compridos, com os pés assentes num chão pedregoso e as mãos atadas por uma corda, encontra-se amarrado a uma coluna[ii] e com o corpo vergado para a frente.
Enverga apenas uma protecção genital e ostenta por todo o corpo as marcas vermelhas da flagelação, fruto dos golpes infligidos pelos soldados romanos.
A exiguidade do vestuário de Jesus durante a flagelação e o martírio na coluna, traduz a humilhação a que os romanos o pretenderam submeter. Por sua vez, as marcas de flagelação simbolizam a humildade, o sofrimento e o sacrifício de Jesus em nome da humanidade.

BIBLIOGRAFIA
VATICAN NEWS. Os Santuários da Flagelação e da Condenação de Jesus. [Em linha]. Disponível em:
https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-04/santuarios-flagelacao-condenacao-jesus.html . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].
WIKIPÉDIA. Flagelação de Jesus. [Em linha]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Flagelação_de_Jesus . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].
WIKIWAND. Flagelação de Jesus. [Em linha]. Disponível em:  https://www.wikiwand.com/pt/Flagelação_de_Jesus . [Consultado em 18 de Fevereiro de 2024].

 Hernâni Matos



[i] A flagelação era uma forma de suplício infringido pelos romanos, visando castigar crimes, obter confissões ou preparar execuções capitais. Para esse efeito, recorriam ao “flagelo”, chicote constituído por tiras de cabedal ou corda com pedaços de ferro nas pontas, com o qual açoitavam as vítimas.

[ii] No contexto do simbolismo e arte cristãos, a coluna é um dos “instrumentos maiores” da Paixão de Cristo. Outros são: a cruz, a coroa de espinhos, o chicote, a esponja, a lança, os pregos e o véu de Verónica. Para além destes, existem ainda outros que são considerados “instrumentos menores”. Uns e outro são vistos como armas que Jesus utilizou para derrotar Satã e são tratados como símbolos heráldicos.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Uma jóia da História Postal de Estremoz


 
Fig. 1

Fig. 2


Prólogo
Há documentos cuja interpretação permite ao investigador catalogá-los na classe das “jóias”. Uma tal inclusão pode ser devida ao teor do seu conteúdo escrito, bem como ao contexto em que este foi produzido, assim como ao grafismo do próprio documento. Pode até acontecer que estas três situações coexistam, o que potencia o valor e o interesse do documento. Vamos ver que é o que se passa com um bilhete-postal ilustrado, pertencente ao meu arquivo de História Postal de Estremoz.

Descrição do bilhete-postal ilustrado
Trata- se de um inteiro postal, mais propriamente um bilhete-postal de Boas Festas do tipo “Tudo Pela Nação,” com selo impresso da taxa de $30 (30 centavos), destinado ao Serviço Nacional, obliterado com a marca do dia da estação dos CTT, do tipo de 1928, do dia 24 de Dezembro de 1942.  O bilhete-postal tem como motivo os Bonecos de Estremoz. A ilustração é de Laura Costa (activa 1920-1950), e o bilhete-postal foi emitido pelos CTT em 1942.
Na parte superior do rosto do bilhete-postal (Fig. 2), a ilustração é constituída por um tradicional “Berço do Menino Jesus” da barrística popular estremocense, o qual se encontra ladeado por dois ramos de azevinho.
No verso do bilhete-postal (Fig. 1) a ilustração representa uma cena no areal da praia da Nazaré e envolve um casal com os seus trajes tradicionais, acompanhados de duas crianças. Aparentam estar a montar no areal a “Adoração dos Reis Magos”, Presépio de 6 figuras, constituído pela Sagrada Família e pelos 3 Reis Magos.
O bilhete-postal ilustrado foi expedido em 24 de Dezembro de 1942 (véspera do Dia de Natal) por Sá Lemos, dirigido ao Dr. Marques Crespo, em Estremoz.

Sá Lemos, o expedidor do bilhete-postal
José Maria de Sá Lemos (1892-1971), escultor, discípulo de Mestre António Teixeira Lopes (1866-1942), começou a trabalhar como professor e simultaneamente Director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, em 21 de Abril de 1932, data da sua tomada de posse, com base no Decreto de 15 de Março de 1932 publicado no Diário do Governo nº 82 – 2ª série de 8 de Março de 1932.
Pela sua acção fez ressurgir os Bonecos de Estremoz, cuja produção tinha cessado com a morte de Gertrudes Rosa Marques (1840-1921) em 1921. Tal ressurgimento foi conseguido recorrendo primeiro à velha barrista Ana das Peles (1869-1945), que foi o instrumento primordial dessa recuperação e depois ao Mestre oleiro Mariano da Conceição (1903-1959) - O “Alfacinha”, o qual foi o instrumento de continuidade dessa recuperação.
No período que esteve em Estremoz e que se prolongou até 30 de Setembro de 1945, foi vereador do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Estremoz entre 1938 e 1945, durante dois mandatos do então Presidente da Câmara, Engº Manuel Bicker de Castro Lobo Pimentel. São de sua autoria a maqueta em barro e em tamanho natural do Monumento aos Mortos da Grande Guerra e da Fonte do Sátiro, ambos em Estremoz.

Marques Crespo, o receptor do bilhete-postal
José Lourenço Marques Guerreiro Crespo (1871-1955), médico, maçon, membro do Partido Republicano Português e Presidente da Câmara Municipal de Estremoz (1923-1926). Foi fundador e director do semanário regionalista “Brados do Alentejo” (1931-1951), fundador da delegação da Cruz Vermelha Portuguesa de Estremoz, membro da comissão fundadora do Teatro Bernardim Ribeiro e Presidente Honorário do Orfeão Tomás Alcaide. Publicou entre outras obras, a monografia “Estremoz e o seu termo regional” (1950).

Estremoz doutros tempos
O facto de o bilhete-postal ter sido expedido apenas na véspera de Natal, também merece alguma reflexão. Decerto que o remetente sabia que no dia de Natal não havia distribuição domiciliária de correspondência, pelo que a missiva só seria recebida já depois do Natal. O que é que o terá levado a expedir o bilhete-postal postal só na véspera de Natal? Não sei. Todavia, posso admitir como plausíveis duas circunstâncias: – A chegada tardia à estação dos CTT de Estremoz, deste tipo de bilhete-postal de Boas Festas: o nº 42 (preparação do Presépio) de uma série de 12, numerados de 35 a 46, todos com ilustração de Laura Costa e ostentando o mesmo tipo de selo impresso; - O conhecimento tardio por parte do remetente da existência do bilhete-postal nº 42 (preparação do Presépio).
O endereço do destinatário resume-se ao nome deste e não inclui o nome do arruamento nem o número de porta. Para este facto contribuíram, decerto, factores como: - O destinatário ser uma personalidade com destaque na sociedade local e por isso muito conhecido; - O número de arruamentos ser muito inferior ao que é na actualidade; - O brio profissional dos carteiros que os levava a empenhar-se na missão de “levar a carta a Garcia”.

Epílogo
Sá Lemos considerara recuperada a produção de Bonecos de Estremoz em artigo publicado no jornal Brados do Alentejo, em 10 de Novembro de 1935. Ainda nesse mesmo ano, os Bonecos de Ana das Peles participaram na “Quinzena de Arte Popular Portuguesa” realizada na Galeria Moos, em Genebra. Em 1936 estiveram presentes na Secção VI (Escultura) da Exposição de Arte Popular Portuguesa, em 1937 na Exposição Internacional de Paris e em 1940 na Exposição do Mundo Português. Nesta exposição estiveram também expostos os Bonecos de Estremoz de Mestre Mariano da Conceição, os quais no pavilhão expositor eram pintados por sua mulher Liberdade da Conceição (1913-1990), face à impossibilidade de Mestre Mariano estar presente por ser funcionário público.
Os Bonecos de Estremoz adquiriram notoriedade pública e projecção internacional com a Exposição do Mundo Português em 1940, de tal modo que os CTT os utiliza como motivo dos bilhetes-postais de Boas Festas de 1942. Deve ter sido uma suprema felicidade para Sá Lemos, que através do bilhete-postal endereça "um abraço de Boas Festas" ao seu amigo Marques Crespo, o qual através da missiva pôde constatar que os Bonecos de Estremoz andavam a ser divulgados pelos CTT através de mensagens natalícias.
Não há dúvida que a mensagem, bem como o seu contexto e o grafismo, legitimam completamente o título escolhido para o presente texto.

Hernâni Matos

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Entrevista sobre o 25 de Abril, concedida ao jornal E, de Estremoz

 


Hernâni Matos: “Foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor”

No ano em que se cumprem 50 anos sobre o 25 de Abril de 1974, o E’ associa-se às comemorações desta que é uma data tão importante da história do país. As memórias da Revolução dos Cravos também são feitas das memórias individuais daqueles que viveram essa experiência única. Registamos hoje a voz de Hernâni Matos, numa primeira entrevista com que assinalamos os 50 anos do 25 de Abril.

Quais as memórias mais fortes que tem do Estado Novo?

A NÍVEL DE INFÂNCIA: - O aglomerado de pobres a pedir esmola à porta da Igreja de São Francisco, à saída da missa de domingo; - Os pobres que nas segundas-feiras percorriam os estabelecimentos comerciais a pedir esmola; -  A constatação de que havia crianças que iam descalças para a escola, porque os pais não tinham dinheiro para lhes comprar sapatos; - A existência de um ensino repressivo que a nível da instrução primária permitia que um professor desse reguadas nas mãos, canadas na cabeça ou puxões de orelhas numa criança, só porque estava desatenta, era irrequieta ou porque não sabia a lição; A NÍVEL DE JUVENTUDE: - Um indigente que nos anos 50 foi a enterrar para o cemitério de Estremoz, transportado na carroça do lixo; - O ambiente carregado das cerimónias do 10 de Junho em Lisboa, onde as mulheres e as mães dos mortos em combate na Guerra Colonial iam receber condecorações a título póstumo. DE ÂMBITO PESSOAL: - O aviso telefónico que foi feito ao meu pai em 1958, no dia das eleições para a Presidência da República, para não se dirigir para a assembleia de voto de S. Lourenço, na qualidade de delegado da candidatura do General Humberto Delgado, uma vez que estava lá a PIDE para o prender; - Uma carga da PIDE em 1968, na qual me vi envolvido, após a proibição da exibição do filme Marcha sobre Washington e um debate subordinado ao tema Quem matou Martin Luther King?, na Paróquia de Santa Isabel, em Lisboa; - A proximidade diária de gorilas, que eram ex-militares das tropas especiais (comandos ou pára-quedistas), contratados como polícias internos das faculdades e cuja função era identificar, vigiar, perseguir, impedir ajuntamentos e espancar estudantes; - O cuidado e as precauções que tinha com aquilo que dizia, ao falar publicamente com alguém, não se fosse dar o caso de haver bufos (informadores) na vizinhança, que me fossem denunciar à polícia política, a PIDE/DGS; - O meu ingresso na carreira docente em 1972, o qual envolveu a chamada ao gabinete do Chefe da Secretaria da Escola, onde tive que jurar e de subscrever com a minha assinatura, a declaração formal exigida pelo famigerado Decreto-lei 27003, de 14 de Setembro de 1936 e cujo teor era o seguinte: “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.” Lá tive que mentir, pois embora não fosse comunista era democrata, o que correspondia a perfilhar ideias subversivas no Estado Novo, regime de partido único: a UN - União Nacional.

Esteve na Universidade ainda nos tempos da ditadura? Sentiu ou viveu a luta estudantil? Tinha, ao tempo, alguma intervenção ou acção política?

Ingressei na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em 1965, pelo que não me vi já envolvido na Crise Académica de 1962, mas não escaparia à Crise Académica de 1969. Era um jovem de espírito aberto, generoso e humanista, ávido de liberdades civis que me eram negadas pelo regime, o que me levava a questionar o sistema e a resistir. Foi assim que ingressei naturalmente no Movimento Associativo da Faculdade de Ciências de Lisboa, o qual contestava o autoritarismo do Estado Novo e reivindicava direitos civis. Lutávamos pela liberdade de expressão e de associação, pela autonomia universitária e a democratização do ensino, pelo fim da repressão e da guerra colonial. Como activista de base do Movimento Associativo da FCUL, integrei a IMPROP – Secção de Imprensa e Propaganda, participei nalgumas RIA – Reunião Inter-Associações, greves às aulas e ocupações da Cantina da Faculdade. Fui uma entre muitas outras formiguinhas que anonimamente e em contexto universitário, deram o seu modesto, mas indispensável contributo a nível civil para que no dia 25 de Abril de 1974 pudesse ocorrer uma mudança de paradigma.

Nas eleições legislativas de 1969, na qualidade de activista da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, fui delegado da candidatura desta Comissão junto de uma das mesas da assembleia de voto que funcionou na Faculdade de Ciências de Lisboa. As eleições viriam a ser ganhas pela UN - União Nacional, liderada por Marcelo Caetano. Era um desfecho previsível, já que a campanha e o acto eleitoral ficaram assinalados, pela fraude, pela perseguição e intimidação da Oposição.

Sentiu, na altura que a ditadura tinha os dias contados?

Apesar da repressão que há muito se vinha abatendo e intensificando sobre as lutas operárias, camponesas, estudantis e dos trabalhadores de serviços, estas também se vinham intensificando. Por outro lado, o Levantamento Militar das Caldas da Rainha de 16 de Março de 1974, apesar de gorado, deu a sensação de que era o prenúncio de uma futura insurreição militar vitoriosa. Parece que havia um “cheirinho no ar” a indiciar que tal viria a acontecer. De facto, lá diz o rifão Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura” e foi assim que os militares aperfeiçoaram o plano e a organização de um novo levantamento, com a devida articulação entre as unidades envolvidas. À segunda foi de vez. Em 25 de Abril de 1974, os militares não falharam.  Bem hajam por isso!

Onde estava no dia 25 de Abril de 1974? Como soube da Revolução? Lembra-se do que fez nesse dia?

Estava adoentado e encontrava-me em casa. Só ao final da manhã tive conhecimento do que se passara em Lisboa e da participação do RC3. Saí imediatamente para a rua, ávido de notícias.  A maioria das pessoas estava eufórica. Todavia também encontrei pessoas apreensivas, com temor daquilo que poderia vir a acontecer. Eu também fiquei eufórico e sempre que me cruzava com alguém com quem tinha mais confiança, lá proferia um “Porra! Até que enfim!”, invariavelmente acompanhado dum aperto de mão ou um abraço ou ainda uma pancada nas costas. O “V” da vitória e o punho erguido só surgiriam mais tarde. E foi assim até ao fim do dia, sempre com a sensação de até respirar melhor. Eram os ares da liberdade que nos tinha sido restituída pelo Movimento dos Capitães. Como reconhecimento e sinal de gratidão, nasceu-nos espontaneamente nos lábios, a palavra de ordem O povo está com o MFA!” e assim seria durante muito tempo.

Olhando para trás, que avaliação faz do processo de transição da ditadura para a democracia que tivemos em Portugal?

A avaliação dessa transição, obriga-me a falar dos responsáveis por essa transição: as Forças Armadas Portuguesas.

O derrube da ditadura mais velha da Europa – o regime de Salazar e de Caetano - foi conseguido em 25 de Abril de 1974, graças à acção militar coordenada do MFA - Movimento das Forças Armadas, cuja origem remonta ao clima de instabilidade no interior das próprias Forças Armadas, particularmente do Exército, instabilidade essa que se manifestou em meados de 1973, com o surgimento do denominado Movimento dos Capitães, o qual aglutinava oficiais de média patente, insatisfeitos com as suas remunerações e com a perda de prestígio da oficialidade do quadro permanente, bem como com a Guerra Colonial que, desde 1961, ou seja, há 13 anos, se arrastava em 3 frentes, sem se antever uma solução política para a mesma, bem como pela previsibilidade de uma derrota militar iminente.

No seu poema “As portas que Abril abriu!”, o saudoso poeta José Carlos Ary dos Santos, diz-nos quem fez o 25 de Abril de 1974: “Quem o fez era soldado /homem novo Capitão /mas também tinha a seu lado /muitos homens na prisão.” E mais adiante: “Foi então que Abril abriu / as portas da claridade /e a nossa gente invadiu / a sua própria cidade.

A chamada Revolução dos cravos desencadeada pelo MFA, teve o apoio massivo da população e o regime foi derrubado praticamente sem derramamento de sangue. A transição pacífica de Portugal de uma ditadura para uma democracia teve repercussões a nível internacional, pois foi vista como um exemplo positivo, influenciando assim sucessivos processos de democratização que se desenvolveram por esse mundo fora.

Que impacto teve a Revolução dos Cravos na sua vida?

Em 1º lugar senti uma grande alegria por sentir que tinham sido quebrados os grilhões que me aprisionavam e que impediam de me sentir um cidadão de corpo inteiro. Em 2º lugar tive a percepção de que era imperativo que o movimento revolucionário do 25 de Abril nos permitisse usufruir de direitos e liberdades que até então nos tinham sido negadas, para o que haveria decerto que lutar, tal como veio a acontecer. Em 3º lugar, intuí que o usufruto desses direitos e liberdades, teria que ser temperado através da assunção de deveres que regulassem o exercício da cidadania.

Um pouco por toda a parte, assumimos o direito à liberdade, à informação e à greve. Arrogámos o direito de reunião, de manifestação, de participação na vida pública e de voto. Reclamámos e conquistámos entre outras, múltiplas formas de liberdade: de expressão e informação, de imprensa, de criação cultural, de aprender e ensinar, de associação, sindical, que mais tarde viriam a ser consignadas na Constituição da República Portuguesa.

O 25 de Abril não me trouxe só alegria pelos motivos apontados, mas também por melhorias nas condições de vida dos portugueses que então ocorreram: aumento dos rendimentos, das oportunidades de aprendizagem, da liberdade e dos direitos das mulheres, bem como melhoria do acesso aos cuidados de saúde e uma mudança de valores que tornaram a sociedade mais aberta, o que teve reflexos a nível da cultura (literatura, artes plásticas, música, teatro, cinema, televisão).

Como foi para si o período que se seguiu à Revolução?

O período pós-25 de Abril, conhecido por PREC - Processo Revolucionário em Curso foi marcado por lutas por melhores de condições de vida de operários, assalariados agrícolas e trabalhadores de serviços, assim como de moradores pelo direito à habitação. Foi um período em que ocorreram nacionalizações, inúmeras manifestações, assim como ocupações de fábricas, herdades e casas. Tratou-se de uma época de grande agitação social, política e militar, caracterizada por intensos debates de âmbito político, económico, social e cultural, bem como confrontos militares entre sectores das Forças Armadas com visões distintas de modelos de sociedade a seguir. Os maiores desses confrontos ocorreram a 11 de Março e a 25 de Novembro de 1975. Nesse período há a assinalar a existência de 6 Governos Provisórios até à constituição do 1º Governo Constitucional liderado por Mário Soares (PS), com base nos resultados das eleições de 25 de Abril de 1976, realizadas após a aprovação da Constituição da República Portuguesa, a 2 do mesmo mês. É com a constituição do 1º Governo Constitucional que se completa a devolução do poder pelos militares aos representantes da sociedade civil, legitimados pelo sufrágio, conforme estava previsto no Programa do MFA

Teve, nessa altura, alguma militância ou intervenção política?

Logo a seguir ao 25 de Abril e em termos cívicos integrei comissões had hoc que iam surgindo, fruto da dinâmica social que se ia gerando: Comissão de vigilância de preços, Comissão de moradores da zona centro, Comissão coordenadora das comissões de moradores, Comissão pró-construção do parque infantil, Comissão Cultural de Estremoz, Comissão de Base de Saúde. A nível sindical fui delegado sindical dos professores na Escola Secundária de Estremoz.

A nível político, desde 1969 e ainda estudante universitário em Lisboa, que me identificava com a CDE - Comissão Democrática Eleitoral, liderada por Francisco Pereira de Moura, pelo que após o 25 de Abril passei a frequentar a sede desde Movimento em Estremoz, participando aí nos debates internos e nas dinâmicas então em curso. Fui um entre muitos outros. Por ali passaram activistas que mais tarde se iriam integrar em partidos: PCP, UDP, MES, PS e PSD. Quando em 1975 a CDE se transformou em MDP/CDE – Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral e se registou como partido, eu não me filiei, uma vez que me já me filiara no PCP – Partido Comunista Português, ainda em 1974, se bem me lembro por influência do meu grande amigo, Aníbal Falcato Alves. Acontece que a certa altura tive consciência de que não reunia condições pessoais para ser militante daquele partido, cujo passado de luta e de resistência me merecia o maior respeito, pelo que saí nos primeiros meses de 1975. Passei então à condição de independente, condição que mantive até integrar a UDP – União Democrática Popular em meados de 1975, desta feita por influência do meu colega e amigo, Albano Martins. Deste partido fui militante enquanto a estrutura organizativa local esteve activa. Em 1993 e a convite do futuro Presidente da Câmara Municipal de Estremoz, o independente e meu amigo José Dias Sena, integrei como independente as listas da CDU – Coligação Democrática Unitária, sendo eleito como deputado municipal, cargo que desempenhei empenhada e activamente durante 3 mandatos, até que senti que era chegada a altura de passar o testemunho, para ter uma maior disponibilidade de intervenção na frente cultural, a qual desde sempre foi e continua a ser a minha grande motivação.

E que avaliação faz da democracia que temos na actualidade?

A democracia portuguesa é uma democracia estável cuja arquitectura tem por base a Constituição da República Portuguesa, lei suprema do país, aprovada em 1976 e revista 7 vezes desde então. Os órgãos de soberania são eleitos, existindo separação e interdependência dos seus poderes. Formalmente está tudo bem. Na prática não é bem assim.

Qual o estado da democracia em Portugal?

A democracia portuguesa sofre de problemas graves que urge resolver em múltiplos domínios: social, económico, financeiro, etc. Deles destaco: elevada abstenção nos actos eleitorais, corrupção, demora na aplicação da Justiça, desemprego, trabalho precário, fraca qualificação da mão de obra, baixa produtividade, salários e pensões muito baixos, falta de oferta pública de habitação, especulação imobiliária, elevada emigração jovem, baixa taxa de natalidade, envelhecimento da população, insuficiência de cuidados dignos na velhice, Serviço Nacional de Saúde com enormes carências, problemas graves a nível da Educação e do Ensino, falta de coesão social e territorial. Estes são os principais problemas que de uma forma ou de outra, atormentam diariamente a esmagadora maioria das pessoas.

50 anos depois do 25 de Abril, apesar da melhoria das condições de vida dos portugueses, ainda se nos deparam desafios a enfrentar para que possa ser assegurada a igualdade de género e a justiça social. Em democracia, isto só se consegues através do aperfeiçoamento da própria democracia. É uma tarefa e um repto que estão em aberto e que exigem o maior empenhamento de todos os cidadãos. 

Hernâni Matos

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Poesia portuguesa - 104




Bonecos de Estremoz
Maria de Santa Isabel (1910-1992) [i]

 

Bonequinhos de barro de Estremoz!
Floridas cantarinhas! Primaveras!
Figuras dum presépio de quimeras!
Quem foi que lhes deu vida no meu sonho?
Eterna fantasia cor de luz,
Milagre suavíssimo, risonho,
Do Menino Jesus…

Horas da minha infância, luminosas,
Da minha crença infinda…
Que até mesmo nas sombras dolorosas
Me iluminam ainda!

- Pelos campos de musgo vão subindo,
Em marcha vagarosa,
Pastores e rebanhos! Sonho lindo,
De quando a nossa vida é cor de rosa!
Um mundo de brinquedos, de alvo encanto,
O mundo em que eu vivi,
De quando sempre em nós é dia santo
E tudo nos sorri!

Lá vão os Reis Magos,
De olhos fitos na estrela que rebrilha,
Reflectindo no espelho azul dos lagos,
A sua luz, doirada maravilha!
Estrelinha anunciando milagrosa
A vida do Menino…
No céu da tela, vibra, luminosa,
Com um fulgor divino!
E, no presépio, além,
O nosso Bom Jesus de olhar profundo…
São José… Sua Mãe:
Eis o poder do Mundo!

Cenário de ilusões! Ainda, agora,
De olhos ardentes, vou fitar-te em vão…
Não sinto em mim aquela paz de outrora…
Mas deixa-me sonhar o coração!

Maria de Santa Isabel (1910-1992)



[i] Pseudónimo literário de Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses e Vasconcellos Alcaide, poetisa estremocense. OBRA POÉTICA: - Flor de Esteva (1948); - Solidão Maior (1957); - Terra Ardente (1961); - Fronteira de Bruma (1997); - Poesia Inédita (A editar). Casada com Roberto Augusto Carmelo Alcaide (1903-1979), 1979), autodidacta, caricaturista, maquetista, cenógrafo, dramaturgo e comerciante.
Maria Palmira, pessoa dotada de rara sensibilidade, coleccionava Bonecos de Estremoz e tinha uma colecção de 104 figuras de finais do séc. XIX – princípios do séc. XX, que por sua vontade expressa foram doadas em 2004 ao Museu Municipal de Estremoz, por sua sobrinha Isabel Maria Osório de Sande Taborda Nunes de Oliveira, professora e ex-vereadora do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Estremoz (1986-1990).
A poesia de Maria de Santa Isabel está disponível no blogue Maria de Santa Isabel : https://mariadesantaisabel.blogspot.com/

Publicado inicialmente a 4 de Janeiro de 2024

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Um singular berço das pombinhas de Ricardo Fonseca

 


Fig. 1

O presente berço do Menino Jesus, conhecido por “berço das pombinhas” (Fig. 1), cuja simbologia já foi por mim analisada [i], é duma tipologia que já era executado por oficina de barristas de Estremoz desconhecidos, de finais do séc. XIX – princípios do séc XX, os quais assinalavam a sua produção com a marca incisa “EXIREMOZ”, aposta por percussão de carimbo. Este tipo de berço continuou a ser produzido por Gertrudes Rosa Marques (1840-1921), Ana das Peles (1869-1945), Mariano da Conceição (1903-1959), Sabina Santos (1921-2005), Liberdade da Conceição (1913-1990), José Moreira (1926-1991), Maria Luísa da Conceição (1934-2015), Fátima Estróia (1948 -  ) e Irmãs Flores [(Maria Inácia (1957 -  ) e Perpétua (1958 -  )] [ii].

No berço de Ricardo Fonseca (1986-  ) é dominante uma dicromia quente-frio, materializada cromaticamente pelo binário ocre amarelo – azul do Ultramar, tradicionalmente usado na arquitectura popular desta terra transtagana, iluminada pelas claridades do Sul. A cor de fundo do berço é o ocre amarelo, à excepção do folho que encima o espaldar do berço e cuja coloração é a do azul do Ultramar.

A dicromia dominante dá uma forte contribuição para contextualizar o berço em termos identitários alentejanos. Esta contextualização é reforçada pela decoração do berço com elementos fitomórficos associados à região: espiga de trigo, papoila e ramo de oliveira (no espaldar) e ramo de sobreiro (na cercadura lateral do berço).

A manta listada que cobre o Menino Jesus é amovível (Fig. 2), o mesmo se passando com o Menino Jesus (Fig. 3), que estava assente num pano branco, por sua vez assente em palhinhas.

Este exemplar de berço do Menino Jesus constitui um bom exemplo da possibilidade que existe de introduzir inovação morfológica e contextualização regional em exemplares do Figurado de Estremoz, sem que estes deixem de pertencer ao chamado núcleo central daquele Figurado.

Hernâni Matos



[i] MATOS, Hernâni. “Contributo para uma Simbólica das Figuras de Presépioin jornal E, n.º 324, Estremoz, 21 de Dezembro de 2023. [Em linha]. Disponível em: https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2023/12/contributo-para-uma-simbolica-das.html [Consultado em 31 de Dezembro de 2023].

[ii] Sabina Santos produziu também outro tipo de berço, habitualmente designado por “berço dos anjinhos”, que foi igualmente confeccionado pelos barristas que se lhe seguiram.


Fig. 2



Fig. 3

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Contributo para uma Simbólica das Figuras de Presépio


Fig. 1 - Berço das pombinhas (1983). Liberdade da Conceição (1913-1990).
Colecção Jorge da Conceição.

Referências bíblicas
O Presépio é um dos grandes símbolos religiosos que retrata o Natal e o nascimento de Jesus. Etimologicamente, a palavra “Presépio” provém do latim “Praesepium”, que genericamente significa curral, estábulo, lugar onde se recolhe gado e que, numa outra óptica, designa qualquer representação do nascimento de Cristo, de acordo com os Evangelhos (LUCAS 2: 1 a 18) e (MATEUS 2: 1 a 11). Deles destaco a Anunciação do Anjo do Senhor aos pastores: “Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura.” (LUCAS 2: 12), bem como “Foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o Menino deitado na manjedoura.” (LUCAS 2: 16).
Um elemento chave dos Presépios tradicionais de Estremoz é o chamado “Berço do Menino Jesus”, cuja simbólica me proponho aqui analisar em dois casos concretos.

Simbólica do Berço das pombinhas
O “Berço das pombinhas” (Fig. 1) é revelador da modificação introduzida pelos barristas de Estremoz no contexto do nascimento de Jesus. Nele, a manjedoura de Belém transfigurou-se em berço com espaldar à maneira das camas senhoriais, já que para os cristãos, Jesus Cristo é Rei e Senhor do Universo. O berço é decorado com recurso ao azul do Ultramar e ao ocre amarelo. Trata-se de cores garridas associadas às claridades do Sul e utilizadas no embelezamento das habitações populares desta terra transtagana.
Na simbologia judaico-cristã, a pomba é um símbolo de pureza e de simplicidade, bem como daquilo que de imorredouro existe no Homem, o princípio vital, a Alma. As quatro pombas brancas poderão ser uma representação alegórica dos quatro evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João), que narraram a vida e a doutrina de Jesus Cristo como um Evangelho, visando preservar os seus ensinamentos ou revelar aspectos da natureza de Deus.
O simbolismo do galo está associado aos cultos solares da antiguidade, nos quais o Sol era venerado como divindade. De acordo com a tradição do culto mitraísta, o galo cantou no momento do nascimento de Mitra, o deus do Sol, da sabedoria e da guerra na Mitologia Persa. O mito viria a ser recuperado pela Religião Cristã, estando na origem da Missa do Galo, celebrada na passagem de 24 para 25 de Dezembro, assinalando o nascimento de Jesus. Não há confirmação histórica de que Jesus tenha nascido na data em que se comemorava o nascimento de Mitra. Todavia, ela foi adoptada pelo Cristianismo, visando fundir os dois cultos, uma vez que o culto a Mitra estava enraizado entre os romanos. A data corresponde também no Hemisfério Norte ao início do Solstício de Inverno, no qual os mitraístas celebravam o seu culto. O Cristianismo adoptou o galo como símbolo do arauto anunciador de boas novas, uma vez que o nascimento de Jesus correspondia ao despontar de uma nova luz para o mundo. Segundo a lenda, a única vez que o galo cantou foi à meia-noite, anunciando o nascimento de Jesus.
De acordo com a Mitologia Popular Portuguesa: - "O galo quando canta diz: - “Jesus é Cristo”; - "O canto do galo à meia-noite faz dispersar a assembleia do Diabo e das Bruxas"; - "É mau agouro um galo cantar antes da meia-noite". Para o Adagiário Português: - “Galo que fora de horas canta / Cutelo na garganta”; - "O galo preto espanta as coisas ruins"; - “Galo branco não dá manhã certa”.
A figura do Menino Jesus está deitada sobre o seu lado direito. O braço esquerdo apoia-se no peito. Trata-se possivelmente de uma alegoria ao “Sagrado Coração de Jesus”. Recorde-se que no antigo Egipto, a mão colocada sobre o peito, indicava a atitude do sábio, que no caso de Jesus é Sabedoria Divina. Já a mão direita no pescoço assinalava a posição do sacrifício, aqui uma possível alegoria ao sacrifício de Jesus na cruz.

Fig. 2 - Berço dos anjinhos (2017). Ricardo Fonseca (1986 - ).
Colecção Hernâni Matos.

Simbólica do Berço dos anjinhos
À semelhança do “Berço das pombinhas” (Fig. 1), também o ”Berço dos anjinhos” (Fig. 2) é revelador da modificação introduzida pelos barristas de Estremoz no contexto do nascimento de Jesus. É igualmente decorado com recurso ao azul do Ultramar e ao ocre amarelo.
O simbolismo do galo é análogo ao do “Berço das pombinhas”. O galo está ladeado de dois anjinhos, mensageiros de Deus junto dos homens. Ostentam asas numa alusão clara à sua capacidade de ascensão ao Céu. São em número de dois, já que Jesus Cristo manifesta dois aspectos: o Divino e o humano. Tocam trombeta, instrumento musical usado para anunciar os grandes acontecimentos históricos e cósmicos. As trombetas associam aqui o Céu e a Terra numa celebração única: o nascimento de Jesus Cristo.
O espaldar do berço está enfeitado com um laço dourado. Na antiga Grécia existia o costume de atar as imagens dos Deuses com um laço, para que não abandonassem o local e o povo. No antigo Egipto, o laço simbolizava a eternidade, pela união entre os deuses e os homens, o Céu e a Terra. Por outras palavras, o laço pode ser encarado como um supremo privilégio de domínio dos deuses. No Cristianismo, os laços das vestimentas representam os três votos: a obediência, a pobreza e a castidade. Modernamente, o laço dourado é símbolo de promoção do valor da amamentação para a sociedade. A cor dourada simboliza a amamentação como padrão ouro para a alimentação infantil. Uma parte do laço representa a mãe e a restante representa a criança. O laço é simétrico, o que significa que a mãe e a criança são ambos vitais para o sucesso da amamentação. Sem o nó não haveria laço, pelo que o nó representa o pai, a família e a sociedade, sem os quais a amamentação não teria êxito. O laço encontra-se ladeado de folhas de sobreiro com bolotas, numa alegoria ao Alentejo.
O berço encontra-se marginado por arcos sensivelmente ogivais, parcialmente encobertos por ramos de palma, verdes. Os ramos de palma simbolizam o martírio de Jesus, uma vez que a palma é considerada um atributo dos mártires, que na arte cristã ocidental são representados empunhando um ramo de palma. Esta, desde a época pré-cristã que é considerada como um símbolo de vitória e de ascensão, pelo que os heróis eram saudados com ramos de palma ao retornarem vitoriosos das batalhas. Os romanos usaram os ramos de palma como símbolo de vitória contra os judeus. Estes viriam a reagir, pelo que de acordo com os quatro evangelhos canónicos, Jesus foi recebido festivamente com ramos de palma na sua entrada triunfal em Jerusalém. Por isso a palma veio a ser adoptada pelos primeiros cristãos como símbolo da vitória dos fiéis sobre os inimigos da alma e é ainda encarada pelos cristãos como símbolo da vitória na guerra travada pelo espírito contra a carne. Daí que no Domingo de Ramos, os fiéis transportem ramos de palma abençoados pelo sacerdote no início da Procissão de Ramos. Pelo facto de se manter sempre verde, a palma encerra em si um simbolismo associado à Ressurreição e Imortalidade de Cristo após o drama do Calvário.
Entre os arcos ogivais, 4 corolas de gerbera que simbolizam a pureza e a inocência das crianças e aqui do Menino Jesus. Da esquerda para a direita e em sequência espectral, as cores e o respectivo simbolismo são sucessivamente: violeta (espiritualidade, mistério e misticismo), azul (nobreza, harmonia e serenidade), laranja (alegria e vitalidade) e vermelho (paixão e amor). As corolas são em número de 4, já que para Pitágoras o número 4 era perfeito, pelo que foi o número utilizado para fazer referência ao nome de Deus. Aquele número está também ligado ao simbolismo da cruz e ao número de evangelistas que descreveram a vida de Jesus.
A figura do Menino Jesus está deitada de costas em cima das palhinhas e com o braço esquerdo apoiado no peito, o que tem interpretação análoga à do “Presépio das pombinhas”. O braço direito encontra-se esticado ao longo do corpo, com a palma da mão aberta, o que significa que não tem nada a esconder. Trata-se da mão direita, a mão que abençoa. A palma está virada para o Céu, simbolizando pacificação e dissipação de todo o medo.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 21 de Dezembro de 2023
Publicado no jornal E, n.º 324, de 21 de Dezembro de 2023
 

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Vera Magalhães recebeu o Certificado de Artesã Produtora de Bonecos de Estremoz

 

A barrista Vera Magalhães ladeada pelo  Presidente do Município, José Daniel Sadio
pelo Presidente da Assembléia Municipal, Ricardo Catarino.
 Fotografia de Município de Estremoz.

Teve lugar ontem no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Estremoz, uma Sessão Comemorativa do 6.º aniversárioda Inscrição da Produção de Figurado em Barro de Estremoz na ListaRepresentativa de Património Cultural Imaterial da UNESCO.

No decurso da cerimónia foi entregue à barrista Vera Magalhães, o Certificado de Artesã Produtora de Bonecos deEstremoz, que lhe foi outorgado pela Adere-CERTIFICA, entidade credenciada para conceder aquela certificação.

Anteriormente, a barrista Vera Magalhães frequentou um “Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz”, que entre 20 de Setembro a 6 de Dezembro de 2019, teve lugar no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte, em Estremoz. O Curso foi promovido pelo CEARTE – Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património, em parceria com o Município de Estremoz. O Curso com a duração de 150 horas e de Nível QNQ 2, teve formação técnica a cargo do barrista Jorge da Conceição. Foi frequentado por 16 formandos, dos quais até à presente data, 4 foram certificados pela Adere – CERTIFICA, como artesãos produtores de Bonecos em Barro de Estremoz.

Mais recentemente, a barrista teve a Exposição “TRADIÇÃO E CULTURA - Bonecos de Estremoz de Vera Magalhães” patente ao público no Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz, entre os dias 9 de Setembro e 26 de Novembro.



quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Aconteceu há 6 anos: Inscrição da Produção de Figurado em Barro de Estremoz na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade

Parte da delegação portuguesa que se deslocou à República da Coreia. Da esquerda
para a direita: Luís Mourinha (Presidente da Câmara Municipal de Estremoz), Manuel
António Gonçalves de Jesus (Embaixador de Portugal na República da Coreia), António
Ceia da Silva (Presidente do Turismo do Alentejo) e Hugo Guerreiro (Director do Museu
Municipal de Estremoz e Responsável Técnico da Candidatura). Fotografia reproduzida
com a devida vénia, a partir do Facebook de António Ceia da Silva.


Importa aqui e mais uma vez, salientar o mérito daqueles a quem se deve o êxito de uma candidatura que se viria a tornar vitoriosa:
1º) Hugo Guerreiro, Director do Museu Municipal de Estremoz, que despoletou e argumentou a candidatura, a qual veio a ter êxito e que corresponde ao primeiro figurado do mundo a merecer a distinção de Património Cultural Imaterial da Humanidade.
2º) Os barristas do passado e do presente, que com o labor e criatividade das suas mãos mágicas e desde as bonequeiras de setecentos, transmitiram de geração em geração e até à actualidade, uma produção sui generis de Bonecos em barro, dita ao “modo de Estremoz”.
3.º) O escultor José Maria de Sá Lemos, que nos anos 30 do séc. XX e recorrendo à velha bonequeira Ana das Peles primeiro e ao Mestre oleiro Mariano da Conceição depois, deu um contributo decisivo para a revitalização da produção de Bonecos de Estremoz, considerada extinta desde 1921.
4º) Os estudiosos, investigadores, escritores e publicistas que com o seu esforço não deixaram morrer a memória dos Bonecos de Estremoz: Luís Chaves, D. Sebastião Pessanha, Virgílio Correia, Azinhal Abelho, Solange Parvaux, Joaquim Vermelho e outros.
5.º) Os coleccionadores, dos quais o mais destacado é Júlio dos Reis Pereira, que ao longo de décadas foram reunindo, catalogando, estudando, comparando e interpretando espécimes que viabilizaram a apresentação de uma candidatura pelo Município de Estremoz.
- BEM HAJAM!

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Exposição "Menino Jesus no Berço"



Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 6 de Dezembro de 2023

O Centro Interpretativo para a Valorização e Salvaguarda do Boneco de Estremoz apresenta, a partir de 9 de dezembro, na sua Sala de Exposições Temporárias, a Exposição “Menino Jesus no Berço” – Figurado de Estremoz.
Esta exposição surge a partir do desafio lançado aos barristas, atualmente a produzirem figurado de Estremoz, para que fizessem, nesta época em que se celebra o nascimento de Jesus, a figura do Menino Jesus deitado no Berço.
Nesta mostra contamos com a participação dos Barristas Afonso e Matilde Ginja, Ana Catarina Grilo, Carlos Alberto Alves, Fátima Estróia, Inocência Lopes, Irmãs Flores, Isabel Pires, Jorge da Conceição, José Carlos Rodrigues, Luís Parente, Luísa Batalha, Madalena Bilro, Manuel Broa, Ricardo Fonseca e Vera Magalhães.
A exposição poderá ser visitada até 28 de janeiro de 2024.
Venha visitar!